A DOR É INDIVIDUAL
... E eu fiquei pensando sobre
esse mundo em que vivemos... Tumultuado, corrido, sem tempo. Rostos estranhos
se entrecruzando nas ruas, nos shoppings, aeroportos, sem se verem, sem serem,
mesmo que remotamente, comparados a outros rostos semelhantes.
Quantas lágrimas há derramado o
senhor Josué que vai ali na minha frente e que nem mesmo pude observar-lhe os
gestos? Quanta dor sentiu Maria quando perdeu alguém que lhe era esteio e
alegria? E a Vanessa? E ali se vão Josués, Marias e Vanessas... Ah! Josués,
Marias e Vanessas!!
Quem é Josué? Homem de fibra,
trabalhador, prestativo, honesto e querido. Construiu histórias, demonstrou
seus valores com seus próprios exemplos, ajudou quem precisava e brigou. Brigou
pelos seus objetivos, pelo mundo, um mundo melhor. Josué queria um mundo
melhor. Ah! Josué!! Estava rodeado de gente que veio apoiar-lhe, estender-lhe o
abraço puxado por aquelas mãos que jamais empurraram. Estavam todos ali, um de
cada vez a prestar-lhe a solidariedade que tanto queremos quando algo ruim nos
acontece. E Josué, comovido, retribuía cada carinho.
Maria sentia dor. Não conseguia
precisar se era uma dor física ou uma dor emocional. Tamanha era sua dor que as
dores se embaralhavam neste ser único e indivisível chamado Maria. Recolhia-se
ao seu pranto como quem se recolhe ao adormecer: sozinha, partida, calada. Lembrou-se
de cada minuto. Recordou-se de cada um que a abraçara na tentativa de
salvar-lhe, ao menos um pouco, de sua dor doída. Sentiu cada cheiro que
translúcido a reportava ao passado.
E Vanessa? Vanessa assistia
televisão. Ria e chorava do que ali assistia, projetando-se em cada personagem
fictício que traz à tona cada um de nós, como se o autor da obra tivesse se
espelhado nela. Reconhecia-se a partir do cenário e viajava de uma ponta a
outra na estrada da fantasia. Seus sonhos estavam ali... partidos e
reinventados por alguém tão estranho e tão familiar.
E eu fiquei pensando... Cada uma
daquelas milhares de pessoas pelas quais passamos diariamente, seja na rua,
seja nas redes sociais ou em qualquer lugar, carrega uma história que
determinou seu modo de agir e de ser meio a tantas outras histórias.
Ah! E aquele Josué brigão? Aquele
que se levanta da cama disposto a discutir até mesmo com sua própria imagem
refletida no espelho. Aquele Josué chato, dos grupos de WhatsApp, que só clica para gerar polêmica ou discordar do que seja?
Postaram. Comentou, Josué. Fala qualquer merda e não se importa nem com o que
fala e nem com o que retrucam. Quer mesmo falar e nem precisa ser escutado,
porque a escuta que precisa é a de si mesmo, mas para esta não está preparado. E
essa, minha gente, como é difícil!! Sente-se muito feliz por ver que retrucam,
sente-se importante, pois pelo menos alguém está falando com ele. Buzina na
rua, xinga o trocador do ônibus, fecha cara para a atendente da padaria e
desafia qualquer pessoa que esteja em condição supostamente melhor que a sua.
Respeito? Jamais. Desconhece o que seja respeito. Nunca ouviu falar. Jamais
seus pais lhe disseram que era para se colocar no lugar do outro para saber o
que deveria ou não lhe dizer. Não aprendeu o que é compaixão. Não se importa
com ninguém, pois aprendeu em todas as mídias, e, diga-se de passagem, que, em
casa também, que deve se amar em primeiro lugar, que ele é o príncipe da titia
e da vovó, que reina diante do papai e da mamãe que se mataram para
sustentá-lo. Ele entendeu ao pé da letra que deve se amar em primeiro lugar.
Não foi capaz de perceber a metáfora. Não foi capaz de compreender a
importância do outro sem o qual jamais se reconheceria enquanto Josué. Ah!
Josué!!
E a Maria que saiu cedo de casa? Levantou-se
às 5 horas da manhã, tomou um gole de café. Vestiu-se e saiu. Pegou o ônibus,
depois o metrô. E ainda faria uma pequena caminhada até o local de trabalho. Encontrou
um Josué à sua frente. Não entendeu nada, mas ficou chateada. Foi empurrada e
xingada quando saía do metrô, por alguém que jamais viu. Não respondeu e Josué
continuou andando e olhando para trás em tom desafiador. Queria brigar. Maria
estava errada a seus olhos, não deveria ter saído antes dele do metrô, porque
ele estava com pressa. E ela tinha que adivinhar. Ela tinha que ter percebido
de alguma maneira que ele era muito mais importante do que ela. Assim pensava
ele empoderado, seguro de si, amando-se em primeiro lugar. Tão obcecado por si
mesmo que jamais conseguiu assumir qualquer responsabilidade pelos seus atos. A
responsabilidade era do outro. Sempre do outro. Responsabilidade carregada de
culpa do outro. Porque entendia que seus atos eram sempre uma resposta ao outro
e nunca o inverso. Falava mal das pessoas, julgava e condenava. Era o carrasco.
Carrasco de si mesmo condenando-se a um vazio crescente que desembocava em uma
solidão jamais percebida. E esperneava querendo chamar a atenção.
Vanessa seguia seu caminho. Sempre
simpática e alegre. Sofrida de pai e mãe mercadores de sonhos, precisava se haver
com o mundo real. Dava golpes na sua própria imaginação que tentava seduzi-la.
À noite conversava com seu travesseiro, virava-se de costa, de bruços, de
lado... e dale conversa! Não
conseguia parar de pensar. Precisava mudar seu caminho.
Josués, Marias e Vanessas, cada
um em sua dor, em sua subjetividade tão complexa quanto o viver. Provocadores e
provocados de alvos distintos sem os arcos e as flechas que os miram. Completos
em seus antagônicos modos de viver, sobreviver. Incoerentes. Coerentes.
Contraditórios. Flexíveis. Inflexíveis. Humanos. Marcadamente humanos. Falíveis.
Miram-se e não se olham.
Indigentes presenciais, experts
virtuais. Não quer mais? Delete-se e esqueça. São 5 mil amigos no Facebook, mais incontáveis e
substituíveis tantos outros no WhatsApp e
no Instagram. Nem sentiram falta do
Pedro. Batiam papo com Pedro. Riram tantas vezes juntos. Só alegria. Claro.
Tristeza não cabe nesses lugares e se alguém está triste que se delete, porque
ninguém tem nada com isso. Ninguém é capaz de se colocar no lugar do outro,
portanto, não sabe sua dor. Pedro sumiu. Ninguém sentiu sua falta. Vieram
outros Pedros. Pedro morreu.
E Josués, Marias e Vanessas
continuam, porque “vida que segue”.
Susana Alamy
Psicóloga Clínica e Hospitalar, Psicoterapeuta
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