quinta-feira, 22 de março de 2018

A dor é individual


A DOR É INDIVIDUAL




... E eu fiquei pensando sobre esse mundo em que vivemos... Tumultuado, corrido, sem tempo. Rostos estranhos se entrecruzando nas ruas, nos shoppings, aeroportos, sem se verem, sem serem, mesmo que remotamente, comparados a outros rostos semelhantes.

Quantas lágrimas há derramado o senhor Josué que vai ali na minha frente e que nem mesmo pude observar-lhe os gestos? Quanta dor sentiu Maria quando perdeu alguém que lhe era esteio e alegria? E a Vanessa? E ali se vão Josués, Marias e Vanessas... Ah! Josués, Marias e Vanessas!!

Quem é Josué? Homem de fibra, trabalhador, prestativo, honesto e querido. Construiu histórias, demonstrou seus valores com seus próprios exemplos, ajudou quem precisava e brigou. Brigou pelos seus objetivos, pelo mundo, um mundo melhor. Josué queria um mundo melhor. Ah! Josué!! Estava rodeado de gente que veio apoiar-lhe, estender-lhe o abraço puxado por aquelas mãos que jamais empurraram. Estavam todos ali, um de cada vez a prestar-lhe a solidariedade que tanto queremos quando algo ruim nos acontece. E Josué, comovido, retribuía cada carinho.

Maria sentia dor. Não conseguia precisar se era uma dor física ou uma dor emocional. Tamanha era sua dor que as dores se embaralhavam neste ser único e indivisível chamado Maria. Recolhia-se ao seu pranto como quem se recolhe ao adormecer: sozinha, partida, calada. Lembrou-se de cada minuto. Recordou-se de cada um que a abraçara na tentativa de salvar-lhe, ao menos um pouco, de sua dor doída. Sentiu cada cheiro que translúcido a reportava ao passado.

E Vanessa? Vanessa assistia televisão. Ria e chorava do que ali assistia, projetando-se em cada personagem fictício que traz à tona cada um de nós, como se o autor da obra tivesse se espelhado nela. Reconhecia-se a partir do cenário e viajava de uma ponta a outra na estrada da fantasia. Seus sonhos estavam ali... partidos e reinventados por alguém tão estranho e tão familiar.

E eu fiquei pensando... Cada uma daquelas milhares de pessoas pelas quais passamos diariamente, seja na rua, seja nas redes sociais ou em qualquer lugar, carrega uma história que determinou seu modo de agir e de ser meio a tantas outras histórias.

Ah! E aquele Josué brigão? Aquele que se levanta da cama disposto a discutir até mesmo com sua própria imagem refletida no espelho. Aquele Josué chato, dos grupos de WhatsApp, que só clica para gerar polêmica ou discordar do que seja? Postaram. Comentou, Josué. Fala qualquer merda e não se importa nem com o que fala e nem com o que retrucam. Quer mesmo falar e nem precisa ser escutado, porque a escuta que precisa é a de si mesmo, mas para esta não está preparado. E essa, minha gente, como é difícil!! Sente-se muito feliz por ver que retrucam, sente-se importante, pois pelo menos alguém está falando com ele. Buzina na rua, xinga o trocador do ônibus, fecha cara para a atendente da padaria e desafia qualquer pessoa que esteja em condição supostamente melhor que a sua. Respeito? Jamais. Desconhece o que seja respeito. Nunca ouviu falar. Jamais seus pais lhe disseram que era para se colocar no lugar do outro para saber o que deveria ou não lhe dizer. Não aprendeu o que é compaixão. Não se importa com ninguém, pois aprendeu em todas as mídias, e, diga-se de passagem, que, em casa também, que deve se amar em primeiro lugar, que ele é o príncipe da titia e da vovó, que reina diante do papai e da mamãe que se mataram para sustentá-lo. Ele entendeu ao pé da letra que deve se amar em primeiro lugar. Não foi capaz de perceber a metáfora. Não foi capaz de compreender a importância do outro sem o qual jamais se reconheceria enquanto Josué. Ah! Josué!!

E a Maria que saiu cedo de casa? Levantou-se às 5 horas da manhã, tomou um gole de café. Vestiu-se e saiu. Pegou o ônibus, depois o metrô. E ainda faria uma pequena caminhada até o local de trabalho. Encontrou um Josué à sua frente. Não entendeu nada, mas ficou chateada. Foi empurrada e xingada quando saía do metrô, por alguém que jamais viu. Não respondeu e Josué continuou andando e olhando para trás em tom desafiador. Queria brigar. Maria estava errada a seus olhos, não deveria ter saído antes dele do metrô, porque ele estava com pressa. E ela tinha que adivinhar. Ela tinha que ter percebido de alguma maneira que ele era muito mais importante do que ela. Assim pensava ele empoderado, seguro de si, amando-se em primeiro lugar. Tão obcecado por si mesmo que jamais conseguiu assumir qualquer responsabilidade pelos seus atos. A responsabilidade era do outro. Sempre do outro. Responsabilidade carregada de culpa do outro. Porque entendia que seus atos eram sempre uma resposta ao outro e nunca o inverso. Falava mal das pessoas, julgava e condenava. Era o carrasco. Carrasco de si mesmo condenando-se a um vazio crescente que desembocava em uma solidão jamais percebida. E esperneava querendo chamar a atenção.

Vanessa seguia seu caminho. Sempre simpática e alegre. Sofrida de pai e mãe mercadores de sonhos, precisava se haver com o mundo real. Dava golpes na sua própria imaginação que tentava seduzi-la. À noite conversava com seu travesseiro, virava-se de costa, de bruços, de lado... e dale conversa! Não conseguia parar de pensar. Precisava mudar seu caminho.

Josués, Marias e Vanessas, cada um em sua dor, em sua subjetividade tão complexa quanto o viver. Provocadores e provocados de alvos distintos sem os arcos e as flechas que os miram. Completos em seus antagônicos modos de viver, sobreviver. Incoerentes. Coerentes. Contraditórios. Flexíveis. Inflexíveis. Humanos. Marcadamente humanos. Falíveis.

Miram-se e não se olham. Indigentes presenciais, experts virtuais. Não quer mais? Delete-se e esqueça. São 5 mil amigos no Facebook, mais incontáveis e substituíveis tantos outros no WhatsApp e no Instagram. Nem sentiram falta do Pedro. Batiam papo com Pedro. Riram tantas vezes juntos. Só alegria. Claro. Tristeza não cabe nesses lugares e se alguém está triste que se delete, porque ninguém tem nada com isso. Ninguém é capaz de se colocar no lugar do outro, portanto, não sabe sua dor. Pedro sumiu. Ninguém sentiu sua falta. Vieram outros Pedros. Pedro morreu.  

E Josués, Marias e Vanessas continuam, porque “vida que segue”.
  
Susana Alamy
Psicóloga Clínica e Hospitalar, Psicoterapeuta


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